Resumo
Este artigo examina o ChatGPT como um ator-rede na perspectiva da Teoria Ator-Rede (TAR) de Bruno Latour, analisando como esta tecnologia de IA participa ativamente na produção e transformação do conhecimento acadêmico. Através de uma análise detalhada das associações sociotécnicas que emergem da interação entre humanos e o ChatGPT, o estudo revela como esta ferramenta não é apenas um intermediário passivo, mas um mediador que traduz, modifica e reconfigura práticas epistêmicas. O artigo propõe um novo entendimento da agência distribuída na produção de conhecimento contemporânea, onde a distinção entre humano e não-humano é constantemente negociada e redefinida, oferecendo insights valiosos para pesquisadores, educadores e desenvolvedores de tecnologia.
Figura 1: Representação conceitual da rede sociotécnica do ChatGPT na produção de conhecimento acadêmico
1. Introdução
A emergência de modelos de linguagem de grande escala (LLMs) como o ChatGPT representa uma transformação significativa nas práticas de produção de conhecimento contemporâneas. Estas tecnologias não apenas automatizam tarefas cognitivas antes exclusivamente humanas, mas também introduzem novas formas de colaboração, mediação e construção de saberes que desafiam categorias epistemológicas tradicionais.
Bruno Latour, através da Teoria Ator-Rede (TAR), oferece um arcabouço teórico particularmente adequado para compreender este fenômeno, ao propor uma ontologia plana onde humanos e não-humanos são analisados simetricamente como atores em redes heterogêneas de associações. Nesta perspectiva, o ChatGPT pode ser entendido não como uma ferramenta passiva, mas como um ator-rede que mobiliza, traduz e transforma o conhecimento através de suas conexões com outros atores.
Este artigo busca aplicar os conceitos fundamentais da TAR para analisar o papel do ChatGPT na produção de conhecimento acadêmico, explorando como esta tecnologia participa ativamente na construção de fatos científicos, na mediação de práticas de pesquisa e na reconfiguração das relações entre humanos e não-humanos no contexto acadêmico.
"Nunca fomos modernos em nossa tentativa de separar natureza e sociedade, ciência e política, humano e não-humano. A proliferação de híbridos, como as inteligências artificiais generativas, apenas torna esta realidade mais evidente." (Adaptado de Latour, 1994)
Ao longo deste trabalho, examinaremos como o ChatGPT opera como um mediador que traduz interesses, mobiliza aliados e estabiliza redes de conhecimento, contribuindo para uma compreensão mais nuançada da agência distribuída na produção de conhecimento contemporânea e suas implicações para a prática acadêmica.
2. Fundamentação Teórica: A Teoria Ator-Rede de Bruno Latour
A Teoria Ator-Rede (TAR), desenvolvida por Bruno Latour, Michel Callon e John Law, representa uma ruptura significativa com abordagens sociológicas tradicionais ao propor uma ontologia plana onde humanos e não-humanos são tratados simetricamente como atores em redes heterogêneas. Esta seção explora os conceitos fundamentais da TAR que servirão como base para nossa análise do ChatGPT.
2.1 Princípios fundamentais da TAR
A TAR se fundamenta em três princípios metodológicos essenciais: a simetria generalizada, que propõe analisar humanos e não-humanos com o mesmo repertório conceitual; o agnosticismo do observador, que exige a suspensão de julgamentos a priori sobre a natureza das relações sociais; e a livre associação, que rejeita distinções prévias entre o natural e o social (Callon, 1986).
Para Latour (2005), a sociedade não é uma entidade que explica fenômenos, mas aquilo que deve ser explicado através do rastreamento de associações entre atores heterogêneos. Nesta perspectiva, o social é entendido como um movimento de reassociação e reagregação constante, onde a agência é distribuída em redes de humanos e não-humanos.
2.2 Conceitos-chave para análise
Ator-rede: Na TAR, um ator é simultaneamente uma rede de associações e um elemento que age dentro de outras redes. Como explica Latour (1999, p. 18), "um ator-rede é, simultaneamente, um ator cuja atividade consiste em fazer alianças com novos elementos, e uma rede capaz de redefinir e transformar aquilo de que é feita".
Tradução: Processo pelo qual atores mobilizam, deslocam e transformam interesses, entidades e significados para construir e manter redes. A tradução envolve quatro momentos: problematização, interessamento, alistamento e mobilização (Callon, 1986).
Mediadores e intermediários: Latour (2005) distingue entre intermediários, que transportam significado sem transformação, e mediadores, que transformam, traduzem e modificam o significado dos elementos que transportam. Esta distinção é crucial para compreender como o ChatGPT opera na produção de conhecimento.
Inscrição: Refere-se aos dispositivos materiais que estabilizam redes de associações, tornando-as duráveis e transportáveis. Textos, imagens, algoritmos e outras formas de representação funcionam como inscrições que permitem a circulação e estabilização do conhecimento (Latour & Woolgar, 1986).
"Um ator em uma rede não é a fonte de uma ação, mas o alvo móvel de um amplo conjunto de entidades que enxameiam em sua direção... A ação é tomada de empréstimo, distribuída, sugerida, influenciada, dominada, traída, traduzida." (Latour, 2005, p. 46)
2.3 A TAR aplicada às tecnologias de informação
Diversos estudos têm aplicado a TAR para analisar tecnologias de informação e comunicação, demonstrando como estas participam ativamente na construção de realidades sociotécnicas (Law & Hassard, 1999; Cressman, 2009). Estas análises revelam como algoritmos, interfaces e infraestruturas digitais não são meros instrumentos, mas atores que reconfiguram práticas, identidades e relações de poder.
A aplicação da TAR ao estudo de inteligências artificiais como o ChatGPT oferece uma perspectiva valiosa para compreender como estas tecnologias participam na produção de conhecimento não como ferramentas neutras, mas como mediadores que traduzem, transformam e reconfiguram práticas epistêmicas através de redes heterogêneas de associações.
Figura 2: Diagrama interativo da rede sociotécnica do ChatGPT na produção de conhecimento acadêmico. Arraste os nós para reorganizar a visualização e passe o mouse sobre eles para ver detalhes.
3. O ChatGPT como Ator-Rede: Análise Sociotécnica
Aplicando os conceitos da TAR, esta seção analisa o ChatGPT como um ator-rede complexo que participa ativamente na produção de conhecimento acadêmico através de múltiplas associações com humanos e não-humanos.
3.1 A constituição sociotécnica do ChatGPT
O ChatGPT não é uma entidade singular e isolada, mas uma rede heterogênea que incorpora e mobiliza diversos elementos: algoritmos de aprendizado de máquina, vastos conjuntos de dados textuais, infraestruturas computacionais, equipes de engenheiros e pesquisadores, práticas de rotulagem e avaliação, políticas de moderação, entre outros. Cada um destes elementos participa na constituição do que reconhecemos como "ChatGPT".
Como observa Latour (1999) em sua análise de objetos técnicos, o ChatGPT pode ser entendido como uma "caixa preta" que oculta a complexidade de sua rede constitutiva. Quando esta caixa é aberta, revela-se um conjunto de associações entre humanos (programadores, rotuladores, usuários) e não-humanos (algoritmos, servidores, interfaces) que se estabilizam temporariamente para produzir os efeitos que atribuímos à tecnologia.
3.2 Processos de tradução na interação com o ChatGPT
A interação entre pesquisadores e o ChatGPT pode ser analisada como um processo de tradução, nos termos de Callon (1986), onde interesses, significados e entidades são mobilizados, deslocados e transformados:
- Problematização: O pesquisador define um problema ou questão que torna o ChatGPT um "ponto de passagem obrigatório" para sua resolução.
- Interessamento: O ChatGPT é configurado (através de prompts, ajustes de parâmetros) para alinhar-se aos interesses específicos do pesquisador.
- Alistamento: O pesquisador e o ChatGPT assumem papéis complementares na produção de conhecimento, estabelecendo uma divisão de trabalho cognitivo.
- Mobilização: Os resultados da interação são estabilizados em textos, análises ou outros artefatos que podem circular e mobilizar outros atores.
Este processo de tradução não é unidirecional: o ChatGPT também traduz e transforma as intenções e interesses do pesquisador, muitas vezes de formas imprevistas, demonstrando sua agência como mediador.
3.3 O ChatGPT como mediador epistêmico
Contrariamente à visão do ChatGPT como mero intermediário que transmite conhecimento sem modificá-lo, a análise latouriana revela seu papel como mediador que transforma ativamente o conhecimento que processa. Esta mediação ocorre através de múltiplos mecanismos:
- Reconfiguração conceitual: O ChatGPT reorganiza e recombina conceitos de formas que podem gerar novas perspectivas ou conexões inesperadas.
- Tradução entre domínios: Ao sintetizar conhecimentos de diferentes campos, o ChatGPT facilita traduções interdisciplinares que podem revelar analogias ou padrões não evidentes.
- Amplificação e filtragem: O modelo amplifica certos aspectos do conhecimento enquanto filtra outros, influenciando o que é considerado relevante ou significativo.
- Estabilização de controvérsias: Ao apresentar sínteses de debates acadêmicos, o ChatGPT pode contribuir para estabilizar temporariamente controvérsias através de suas inscrições textuais.
"Os não-humanos, uma vez mobilizados e alistados em práticas, não permanecem dóceis instrumentos à espera de serem representados corretamente. Eles modificam os objetivos dos humanos que os empregam; eles traduzem o que deveriam estar transportando." (Adaptado de Latour, 1999)
Esta análise do ChatGPT como mediador epistêmico desafia a concepção instrumental da tecnologia, evidenciando como sua agência transforma ativamente as práticas de produção de conhecimento nas quais está inserido.
Tabela 1: Comparação entre Visões Instrumentais e Latourianas do ChatGPT
Dimensão | Visão Instrumental Tradicional | Visão Latouriana (TAR) |
---|---|---|
Ontologia | O ChatGPT é uma ferramenta neutra, um objeto técnico com propriedades fixas e bem definidas. | O ChatGPT é um ator-rede heterogêneo, constituído por múltiplas associações entre humanos e não-humanos em constante negociação. |
Agência | A agência reside exclusivamente nos usuários humanos; o ChatGPT é um instrumento passivo que executa comandos. | A agência é distribuída na rede; o ChatGPT é um mediador que traduz, transforma e modifica significados e ações. |
Produção de Conhecimento | O ChatGPT transmite ou processa conhecimento pré-existente; a criação de conhecimento é exclusivamente humana. | O conhecimento emerge de redes heterogêneas onde o ChatGPT participa ativamente como mediador que reconfigura práticas epistêmicas. |
Relação Humano-Máquina | Relação hierárquica e unidirecional: humanos controlam e utilizam o ChatGPT para seus objetivos. | Relação de co-constituição: humanos e o ChatGPT se transformam mutuamente através de suas interações e associações. |
Erro e Viés | Erros e vieses são falhas técnicas a serem corrigidas para aproximar o modelo de uma objetividade ideal. | Erros e vieses são produtos de redes sociotécnicas específicas que revelam as associações e traduções que constituem o ChatGPT. |
Ética e Responsabilidade | A responsabilidade ética recai sobre os desenvolvedores e usuários humanos que controlam a tecnologia. | A responsabilidade é distribuída na rede, exigindo novas formas de governança que reconheçam a agência distribuída sem diluir a accountability. |
Transformação Social | O ChatGPT causa impactos sociais como força externa que modifica práticas existentes. | O ChatGPT emerge de e participa em reconfigurações sociotécnicas onde o "social" e o "técnico" se co-constituem. |
Esta tabela contrasta a visão instrumental tradicional do ChatGPT como ferramenta neutra com a perspectiva da Teoria Ator-Rede que o analisa como mediador ativo em redes heterogêneas.
4. Reconfigurações Epistêmicas: O ChatGPT e a Transformação das Práticas Acadêmicas
A integração do ChatGPT nas práticas acadêmicas não apenas modifica ferramentas e métodos, mas reconfigura fundamentalmente relações epistêmicas e ontológicas que estruturam a produção de conhecimento.
4.1 Redistribuição da agência epistêmica
A interação com o ChatGPT desestabiliza concepções tradicionais de autoria e agência intelectual, revelando o caráter distribuído da cognição acadêmica. Como argumenta Hutchins (1995), a cognição não está confinada à mente individual, mas distribuída entre humanos e artefatos em sistemas sociotécnicos.
Esta redistribuição da agência epistêmica manifesta-se em diversas práticas emergentes:
- Co-autoria humano-IA: Textos acadêmicos produzidos através de interações iterativas entre pesquisadores e o ChatGPT, onde a distinção entre contribuições humanas e não-humanas torna-se difusa.
- Delegação cognitiva: Pesquisadores delegam certas tarefas cognitivas (síntese de literatura, geração de hipóteses, análise preliminar) ao ChatGPT, reconfigurando a divisão do trabalho intelectual.
- Negociação de expertise: A autoridade epistêmica é continuamente negociada entre humanos e o ChatGPT, com pesquisadores avaliando, contestando e refinando as contribuições do modelo.
Esta redistribuição não implica uma equivalência simétrica entre humanos e o ChatGPT, mas uma reconfiguração complexa das relações de agência que desafia dicotomias simplistas entre criação humana e automação tecnológica.
4.2 Transformação das práticas de validação do conhecimento
A participação do ChatGPT na produção acadêmica também transforma os processos pelos quais o conhecimento é validado, contestado e legitimado. Estas transformações incluem:
- Novas formas de revisão: Emergência de práticas híbridas de revisão que combinam avaliação humana com análises assistidas por IA, alterando os critérios e processos de validação acadêmica.
- Contestação algorítmica: O ChatGPT pode funcionar como um ator que contesta ou desafia afirmações estabelecidas, introduzindo novas perspectivas ou identificando inconsistências em argumentos.
- Transparência e rastreabilidade: Crescente importância de documentar e tornar visíveis as contribuições do ChatGPT, desenvolvendo novos protocolos para assegurar a integridade e rastreabilidade do conhecimento produzido.
Estas transformações não representam uma simples extensão de práticas existentes, mas uma reconfiguração fundamental dos processos de validação que sustentam a produção de conhecimento acadêmico.
4.3 Emergência de novas ontologias híbridas
A integração do ChatGPT nas práticas acadêmicas contribui para a emergência do que Haraway (1991) denomina "ontologias ciborgues" - configurações híbridas que desafiam fronteiras estabelecidas entre humano e máquina, natural e artificial, sujeito e objeto.
Estas ontologias híbridas manifestam-se em fenômenos como:
- Cognição estendida: Pesquisadores incorporam o ChatGPT como extensão de suas capacidades cognitivas, borrrando a distinção entre pensamento interno e processamento externo.
- Identidades acadêmicas híbridas: Emergência de novas identidades profissionais que integram competências humanas tradicionais com habilidades de colaboração com IA.
- Objetos epistêmicos híbridos: Produção de artefatos de conhecimento (artigos, teorias, modelos) que incorporam contribuições humanas e não-humanas de formas indissociáveis.
"O trabalho científico é heterogêneo, não apenas porque envolve muitas pessoas diferentes e muitas diferentes especialidades, mas também porque requer a conjunção de muitos objetos diferentes, instrumentos, habilidades, recursos, argumentos." (Law, 1992, p. 381)
Estas reconfigurações epistêmicas não são determinadas unilateralmente pela tecnologia, mas emergem de redes complexas de associações entre pesquisadores, instituições, tecnologias e práticas em constante negociação e transformação.
5. Estudos de Caso: O ChatGPT em Redes Acadêmicas
Esta seção apresenta três estudos de caso que ilustram como o ChatGPT opera como ator-rede em diferentes contextos acadêmicos, demonstrando empiricamente os processos de tradução, mediação e reconfiguração analisados nas seções anteriores.
5.1 Caso 1: Revisão sistemática de literatura assistida por IA
Este caso examina um projeto de revisão sistemática em ciências da saúde onde o ChatGPT foi integrado como ator no processo de identificação, seleção e síntese de literatura científica. A análise revela como:
- O ChatGPT atuou como mediador que transformou os critérios de inclusão/exclusão através de suas traduções, influenciando quais estudos foram considerados relevantes.
- Emergiu uma rede híbrida de validação onde pesquisadores humanos e o ChatGPT negociavam continuamente a interpretação e síntese dos achados científicos.
- O processo resultou em inscrições (tabelas de síntese, mapas conceituais) que incorporavam contribuições humanas e não-humanas de formas indissociáveis.
Este caso ilustra como o ChatGPT não apenas automatiza aspectos da revisão de literatura, mas reconfigura fundamentalmente as práticas de síntese e interpretação através de sua agência como mediador epistêmico.
5.2 Caso 2: Colaboração interdisciplinar mediada por IA
O segundo caso analisa um projeto interdisciplinar envolvendo pesquisadores de ciências sociais e ciências da computação, onde o ChatGPT funcionou como mediador entre diferentes tradições disciplinares. A análise demonstra:
- Como o ChatGPT atuou como "objeto fronteiriço" (Star & Griesemer, 1989) que facilitou traduções entre vocabulários e metodologias disciplinares distintas.
- O processo de negociação através do qual o ChatGPT foi configurado para incorporar e traduzir conceitos de ambas as disciplinas, transformando-se através das interações com os pesquisadores.
- Como a colaboração resultou na emergência de novos objetos epistêmicos híbridos que não poderiam ser atribuídos exclusivamente a nenhuma das disciplinas ou atores envolvidos.
Este caso evidencia o papel do ChatGPT não apenas como ferramenta de comunicação interdisciplinar, mas como ator que participa ativamente na construção de novos espaços epistêmicos híbridos.
5.3 Caso 3: Controvérsias sobre autoria e contribuição
O terceiro caso examina uma controvérsia acadêmica sobre a atribuição de autoria em publicações que utilizaram extensivamente o ChatGPT, analisando como diferentes atores mobilizaram argumentos e recursos para estabilizar ou desestabilizar definições de autoria e contribuição intelectual.
- A análise revela como o ChatGPT foi simultaneamente "objetificado" como ferramenta passiva por alguns atores e "subjetificado" como colaborador ativo por outros, demonstrando a fluidez ontológica característica dos atores-rede.
- Documenta o processo de construção de novos protocolos e standards para reconhecer e documentar contribuições não-humanas, evidenciando como normas epistêmicas são renegociadas em resposta à emergência de novos atores.
- Identifica como a controvérsia mobilizou redes mais amplas de atores (editoras, comitês de ética, agências de financiamento) que participaram na estabilização de novas configurações de autoria e reconhecimento.
Este caso ilustra como o ChatGPT não apenas participa na produção de conteúdo acadêmico, mas também catalisa transformações nas normas, valores e instituições que governam a atribuição de crédito e responsabilidade intelectual.
6. Implicações e Considerações Éticas
A análise do ChatGPT como ator-rede na produção de conhecimento acadêmico levanta importantes implicações éticas, políticas e epistemológicas que merecem consideração cuidadosa.
6.1 Política ontológica e inclusão de atores
Como argumenta Mol (1999), toda prática envolve uma "política ontológica" que determina quais atores são reconhecidos, incluídos ou excluídos. A integração do ChatGPT nas práticas acadêmicas levanta questões sobre:
- Quais vozes e perspectivas são amplificadas ou marginalizadas pelos processos de treinamento e operação do ChatGPT.
- Como garantir que a redistribuição da agência epistêmica não reproduza ou intensifique desigualdades existentes no acesso e produção de conhecimento.
- A necessidade de desenvolver práticas mais inclusivas que reconheçam a diversidade de atores (humanos e não-humanos) que participam na produção de conhecimento.
6.2 Responsabilidade distribuída e governança
A agência distribuída em redes sociotécnicas complexas desafia concepções tradicionais de responsabilidade centradas em atores individuais. Isto levanta questões sobre:
- Como atribuir e distribuir responsabilidade por erros, vieses ou consequências negativas em sistemas onde a agência é distribuída entre múltiplos atores humanos e não-humanos.
- A necessidade de desenvolver novos modelos de governança que reconheçam o caráter distribuído da agência sem diluir a responsabilidade ética.
- Como equilibrar a abertura à participação de novos atores com a necessidade de accountability e transparência.
"A questão não é se as máquinas pensam, mas se somos capazes de pensar novos modos de relação com as máquinas. Não se trata de projetar no outro nossas próprias questões, mas de aprender a formular questões que incluam a alteridade técnica como parte do problema e da solução." (Adaptado de Latour, 2004)
6.3 Pluralismo epistêmico e diversidade de redes
A análise latouriana do ChatGPT também aponta para a importância de manter e cultivar uma diversidade de redes sociotécnicas na produção de conhecimento, evitando a homogeneização de práticas epistêmicas. Isto implica:
- Reconhecer e valorizar múltiplas formas de conhecimento e práticas epistêmicas, incluindo aquelas que não dependem ou incorporam o ChatGPT.
- Desenvolver ecologias de conhecimento diversas onde diferentes configurações de atores humanos e não-humanos possam coexistir e interagir.
- Resistir à tendência de padronização e homogeneização que pode resultar da adoção generalizada de tecnologias como o ChatGPT.
Estas considerações éticas não são externas à análise do ChatGPT como ator-rede, mas parte integral da compreensão de como esta tecnologia participa na reconfiguração das práticas de produção de conhecimento e suas implicações para diferentes atores e comunidades.
7. Conclusão: Por uma Compreensão Simétrica da Produção de Conhecimento
Este artigo propôs uma análise do ChatGPT como ator-rede na produção de conhecimento acadêmico, demonstrando como esta tecnologia participa ativamente na construção, transformação e circulação do conhecimento através de redes heterogêneas de associações.
A perspectiva da Teoria Ator-Rede de Bruno Latour oferece insights valiosos para compreender o ChatGPT não como uma ferramenta passiva ou um agente autônomo, mas como um mediador que traduz, transforma e reconfigura práticas epistêmicas através de suas associações com outros atores humanos e não-humanos.
Esta análise revela como a integração do ChatGPT nas práticas acadêmicas contribui para:
- Uma redistribuição da agência epistêmica que desafia concepções tradicionais de autoria e criação intelectual.
- A transformação dos processos de validação e legitimação do conhecimento, com a emergência de novas práticas híbridas de revisão e avaliação.
- O desenvolvimento de ontologias híbridas que desestabilizam fronteiras estabelecidas entre humano e máquina, natural e artificial, sujeito e objeto.
Estas transformações não são determinadas unilateralmente pela tecnologia, mas emergem de redes complexas de associações que são continuamente negociadas, contestadas e estabilizadas através das práticas de diversos atores.
A compreensão do ChatGPT como ator-rede oferece uma base para desenvolver abordagens mais reflexivas e responsáveis à integração desta tecnologia nas práticas acadêmicas, reconhecendo tanto seu potencial transformador quanto as questões éticas, políticas e epistemológicas que sua participação na produção de conhecimento suscita.
Em última análise, a análise latouriana do ChatGPT convida-nos a repensar fundamentalmente o que entendemos por produção de conhecimento, não como um processo exclusivamente humano, mas como uma prática coletiva que sempre envolveu a participação de diversos atores humanos e não-humanos em redes heterogêneas de associações. O que muda com o ChatGPT não é a natureza distribuída da agência epistêmica, mas sua visibilidade e configuração específica, oferecendo novas oportunidades e desafios para a prática acadêmica contemporânea.
Referências Bibliográficas
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Sobre o Autor
Prof. Me. Ivan Prizon
Doutorando em Política de Inovação (UFPR)
Economista pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Doutorando em Política de Inovação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ex-pesquisador no Observatório da Indústria na Federação da Indústria do Estado do Paraná e ex-Economista na Secretaria da Fazenda, na Receita Estadual do Paraná. Atualmente é Pesquisador Chefe e Diretor de Novos Negócios na Rede Integrare de Pesquisa e Análise e Estrategista de Marca e Negócios na Agência Integrare. Desenvolve projetos paralelos de Inteligência Artificial, Metodologia Científica e Inovação, entre eles o Instituto de Criação e Inovação (ICI) que fomenta e desenvolve trabalhos na área de Inovação, IA e Design Thinking.
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