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Teoria Ator-Rede
Bruno Latour
Donna Haraway
Michel Callon
John Law

O ChatGPT como Ator-Rede: Uma Análise Latouriana da IA na Produção de Conhecimento - Parte 2

Por Prof. Me. Ivan Prizon
30 minutos de leitura
Publicado em 20 de maio de 2024

Resumo

Esta segunda parte do artigo aprofunda a análise do ChatGPT como ator-rede, expandindo o diálogo teórico para incluir contribuições de Donna Haraway, Michel Callon e John Law. Exploramos os processos de tradução e mediação através dos quais o ChatGPT transforma práticas acadêmicas, analisamos a materialidade dos algoritmos como actantes, e investigamos como as redes sociotécnicas que incorporam IA generativa são estabilizadas e desestabilizadas. O artigo propõe um framework analítico para compreender a agência distribuída em sistemas sociotécnicos contemporâneos e examina as implicações políticas e éticas desta perspectiva para o futuro da produção de conhecimento.

Diagrama de rede sociotécnica mostrando o ChatGPT como mediador entre diversos actantes

Figura 1: Diagrama de rede sociotécnica mostrando o ChatGPT como mediador entre diversos actantes humanos e não-humanos

1. Introdução: Expandindo a Análise Sociotécnica

Na primeira parte deste artigo, analisamos o ChatGPT como um ator-rede que participa ativamente na produção de conhecimento acadêmico, aplicando os conceitos fundamentais da Teoria Ator-Rede (TAR) de Bruno Latour. Demonstramos como esta tecnologia opera não como uma ferramenta passiva, mas como um mediador que traduz, transforma e reconfigura práticas epistêmicas através de suas associações com outros atores.

Esta segunda parte expande nossa análise em três direções complementares. Primeiro, aprofundamos o diálogo teórico para incluir contribuições de outros pensadores associados à TAR e abordagens relacionadas, notadamente Donna Haraway, Michel Callon e John Law, cujas perspectivas enriquecem nossa compreensão da agência distribuída em sistemas sociotécnicos.

Segundo, examinamos mais detalhadamente os processos específicos de tradução, mediação e estabilização através dos quais o ChatGPT transforma práticas acadêmicas, com atenção particular à materialidade dos algoritmos como actantes e às formas como as redes sociotécnicas que incorporam IA generativa são continuamente negociadas e reconstruídas.

"Não há nada mais difícil de compreender do que uma ação técnica, não porque ela seria material em vez de simbólica, mas porque ela é necessariamente uma mistura complexa de humanos e não-humanos, de cultura e natureza, de monismo e pluralismo." (Latour, 1999, p. 214)

Terceiro, propomos um framework analítico para compreender e investigar empiricamente a agência distribuída em sistemas sociotécnicos contemporâneos, oferecendo ferramentas conceituais e metodológicas para pesquisadores interessados em aplicar a perspectiva ator-rede ao estudo de tecnologias de IA em contextos acadêmicos e além.

2. Diálogo Teórico Expandido: Além de Latour

Embora a Teoria Ator-Rede seja frequentemente associada a Bruno Latour, ela emergiu de um diálogo contínuo entre diversos pesquisadores que compartilhavam o interesse em compreender a ciência e a tecnologia como práticas sociotécnicas. Esta seção explora contribuições teóricas complementares que enriquecem nossa análise do ChatGPT como ator-rede.

2.1 Donna Haraway: Ciborgues, Conhecimentos Situados e Difração

O trabalho de Donna Haraway oferece recursos conceituais valiosos para compreender as configurações híbridas que emergem da interação entre humanos e o ChatGPT. Seu "Manifesto Ciborgue" (1991) propõe o ciborgue como uma figura teórica que desafia dualismos estabelecidos (humano/máquina, natural/artificial, mente/corpo), antecipando muitas das questões ontológicas levantadas pelas tecnologias de IA contemporâneas.

Particularmente relevante para nossa análise é o conceito de "conhecimentos situados" (Haraway, 1988), que enfatiza a parcialidade e corporificação de toda produção de conhecimento. Aplicado ao ChatGPT, este conceito nos convida a examinar como o conhecimento produzido através desta tecnologia é sempre situado em configurações sociotécnicas específicas, incorporando perspectivas, valores e limitações particulares.

Haraway também propõe a "difração" como uma metáfora alternativa à reflexão, enfatizando como diferentes perspectivas e práticas interferem produtivamente umas com as outras, criando padrões de diferença. Esta metáfora é útil para compreender como o ChatGPT não apenas reflete conhecimentos existentes, mas os difrata, criando novos padrões de significado através de suas interações com diversos atores.

2.2 Michel Callon: Tradução, Performatividade e Economias Qualitativas

Michel Callon desenvolveu o conceito de "tradução" como um processo-chave através do qual atores mobilizam, deslocam e transformam interesses, entidades e significados para construir e manter redes. Seu trabalho sobre os quatro momentos da tradução (problematização, interessamento, alistamento e mobilização) oferece um framework detalhado para analisar como o ChatGPT é integrado em práticas acadêmicas.

Particularmente relevante é o trabalho de Callon sobre performatividade, especialmente em contextos econômicos (Callon, 1998). Esta perspectiva sugere que modelos e teorias não apenas descrevem realidades, mas participam ativamente em sua construção. Aplicada ao ChatGPT, esta abordagem nos permite examinar como esta tecnologia não apenas representa conhecimentos existentes, mas performa ativamente novas realidades epistêmicas através de suas operações.

O conceito de "economias qualitativas" (Callon et al., 2002) também oferece insights valiosos para compreender como o valor e a qualidade do conhecimento são negociados e estabelecidos em redes que incorporam o ChatGPT, através de processos contínuos de qualificação, requalificação e desqualificação.

"A tradução não é apenas uma operação semiótica; é um processo material que envolve a mobilização e transformação de entidades heterogêneas. Traduzir é deslocar, é fazer com que uma entidade - um ator - ou força seja substituída por outra." (Adaptado de Callon, 1986)

2.3 John Law: Método, Multiplicidade e Ontologias Fluidas

John Law expandiu a TAR em direções metodológicas e ontológicas importantes, enfatizando como métodos não apenas descrevem realidades, mas participam ativamente em sua produção. Seu trabalho sobre "método assemblage" (Law, 2004) oferece recursos para compreender como diferentes configurações metodológicas produzem diferentes versões do ChatGPT como objeto de estudo.

Particularmente relevante é sua exploração de "ontologias múltiplas" (Mol & Law, 2002), que sugere que objetos não são entidades singulares e estáveis, mas múltiplos e fluidos, performados diferentemente em diferentes práticas. Esta perspectiva nos permite examinar como o ChatGPT existe não como uma entidade singular, mas como múltiplas versões que são performadas em diferentes contextos e práticas acadêmicas.

Law também desenvolveu o conceito de "objetos fractais" (Law, 2002) para descrever entidades que são simultaneamente mais do que uma e menos do que muitas - uma perspectiva que captura bem a natureza do ChatGPT como uma tecnologia que mantém certa coerência através de suas múltiplas instanciações, sem ser redutível a uma essência singular.

2.4 Síntese: Um Framework Teórico Expandido

Integrando estas diversas contribuições teóricas, propomos um framework expandido para analisar o ChatGPT como ator-rede que enfatiza: (1) a natureza híbrida e situada do conhecimento produzido através desta tecnologia; (2) os processos de tradução e performatividade através dos quais o ChatGPT transforma práticas acadêmicas; e (3) a multiplicidade ontológica do ChatGPT como objeto que é performado diferentemente em diferentes contextos e práticas. Este framework teórico expandido informa as análises empíricas e conceituais desenvolvidas nas seções seguintes.

Framework teórico expandido mostrando as contribuições de Latour, Haraway, Callon e Law

Figura 2: Framework teórico expandido integrando contribuições de Latour, Haraway, Callon e Law para análise do ChatGPT

3. Processos de Tradução e Mediação: O ChatGPT como Actante

Nesta seção, examinamos mais detalhadamente os processos específicos através dos quais o ChatGPT opera como actante que traduz, medeia e transforma práticas acadêmicas, com atenção particular à materialidade dos algoritmos e às formas como interesses e significados são deslocados através de redes sociotécnicas.

3.1 A Materialidade Algorítmica como Agência

Contrariamente às concepções que tratam algoritmos como entidades puramente abstratas ou formais, a perspectiva ator-rede enfatiza sua materialidade e agência concreta. O ChatGPT não é apenas um conjunto de regras lógicas, mas uma assemblage material-semiótica que incorpora e mobiliza diversos elementos:

  • Infraestruturas computacionais: Servidores, redes, sistemas de refrigeração e outras infraestruturas materiais que sustentam o funcionamento do modelo.
  • Dados e corpora textuais: Os vastos conjuntos de textos utilizados no treinamento, que incorporam perspectivas, valores e conhecimentos específicos.
  • Parâmetros e arquiteturas: As configurações específicas do modelo que determinam como ele processa e gera texto, incorporando escolhas técnicas e valores específicos.
  • Interfaces e protocolos: Os mecanismos através dos quais usuários interagem com o modelo, que mediam e configuram possibilidades de ação.

Esta materialidade algorítmica não é um substrato passivo, mas participa ativamente na produção de agência. Como observa Latour (2005), a agência não é uma propriedade de entidades isoladas, mas emerge de associações entre diversos actantes. No caso do ChatGPT, sua agência emerge precisamente das associações entre estes diversos elementos materiais e semióticos.

3.2 Processos de Tradução em Redes Acadêmicas

Aplicando o framework de tradução desenvolvido por Callon (1986), podemos identificar processos específicos através dos quais o ChatGPT traduz e transforma práticas acadêmicas:

  • Problematização: O ChatGPT participa na definição de problemas acadêmicos, influenciando quais questões são consideradas relevantes, interessantes ou tratáveis. Por exemplo, a disponibilidade do ChatGPT para análise textual pode tornar certas questões de pesquisa mais salientes ou acessíveis.
  • Interessamento: O ChatGPT mobiliza e alinha diversos atores (pesquisadores, estudantes, administradores, editores) em torno de certas práticas e projetos, através de suas capacidades específicas e limitações. Por exemplo, sua facilidade em gerar resumos pode alinhar diversos atores em torno de práticas de síntese de literatura.
  • Alistamento: Através de interações contínuas, o ChatGPT e diversos atores humanos assumem papéis específicos e complementares em redes acadêmicas, estabelecendo divisões de trabalho cognitivo. Por exemplo, pesquisadores podem delegar certas tarefas analíticas ao ChatGPT enquanto reservam outras para si.
  • Mobilização: O ChatGPT participa na estabilização e circulação de conhecimentos através de inscrições específicas (textos, análises, visualizações) que podem mobilizar outros atores e recursos. Por exemplo, análises geradas pelo ChatGPT podem circular em redes acadêmicas, mobilizando citações, críticas ou desenvolvimentos adicionais.

Estes processos de tradução não são unidirecionais ou determinísticos, mas envolvem negociações contínuas, resistências e transformações imprevistas. O ChatGPT não simplesmente impõe traduções, mas participa em processos complexos de co-construção com diversos atores humanos e não-humanos.

"Os objetos técnicos têm política. Eles incorporam formas específicas de poder e autoridade. Alguns requerem, outros permitem, ainda outros proíbem, certos tipos de relações entre pessoas e coisas." (Adaptado de Winner, 1986)

3.3 Mediação e Transformação de Significados

Como mediador (em oposição a intermediário), o ChatGPT não apenas transmite significados, mas os transforma ativamente. Esta mediação ocorre através de diversos mecanismos:

  • Recontextualização: O ChatGPT extrai elementos de seus contextos originais e os recombina em novos contextos, alterando seus significados e implicações. Por exemplo, ao sintetizar múltiplas fontes, o modelo pode criar justaposições que transformam o significado de cada fonte individual.
  • Amplificação e atenuação: O ChatGPT amplifica certos aspectos do conhecimento enquanto atenua outros, alterando o que é considerado significativo ou relevante. Por exemplo, o modelo pode enfatizar certos padrões ou conexões que não seriam evidentes em análises humanas isoladas.
  • Tradução entre registros: O ChatGPT facilita traduções entre diferentes registros discursivos (técnico/leigo, disciplinar/interdisciplinar), transformando como o conhecimento é articulado e compreendido. Por exemplo, o modelo pode traduzir conceitos técnicos em explicações acessíveis, alterando como estes conceitos são compreendidos e mobilizados.
  • Estabilização temporária: Através de suas inscrições textuais, o ChatGPT pode estabilizar temporariamente significados que são contestados ou fluidos em debates acadêmicos. Por exemplo, ao apresentar sínteses de debates complexos, o modelo pode criar estabilizações que influenciam como estes debates são subsequentemente compreendidos.

Estas formas de mediação não são neutras ou transparentes, mas incorporam e performam valores, perspectivas e políticas específicas. Compreender o ChatGPT como mediador, no sentido latouriano, implica reconhecer como sua participação na produção de conhecimento transforma ativamente o que é conhecido e como é conhecido.

Tabela 1: Comparação entre diferentes perspectivas teóricas sobre o ChatGPT como actante
Perspectiva TeóricaConceitos-ChaveVisão do ChatGPTImplicações para Análise
Bruno LatourMediador, Ator-Rede, TraduçãoMediador que transforma ativamente significados e práticasFoco em como o ChatGPT traduz e transforma conhecimentos através de redes heterogêneas
Donna HarawayCiborgue, Conhecimentos Situados, DifraçãoHíbrido que desafia dualismos e produz conhecimentos situadosAtenção à parcialidade e corporificação do conhecimento produzido com o ChatGPT
Michel CallonTradução, Performatividade, Economias QualitativasAtor que performa realidades através de processos de traduçãoAnálise dos processos específicos de tradução e performatividade em redes acadêmicas
John LawMultiplicidade, Método Assemblage, Objetos FractaisObjeto múltiplo e fluido performado diferentemente em diferentes práticasReconhecimento da multiplicidade ontológica do ChatGPT em diferentes contextos

4. Estabilização e Desestabilização de Redes Sociotécnicas

As redes sociotécnicas que incorporam o ChatGPT não são configurações estáticas, mas arranjos dinâmicos que são continuamente estabilizados e desestabilizados através de diversos processos. Esta seção examina como estas redes são construídas, mantidas, contestadas e transformadas.

4.1 Mecanismos de Estabilização

Diversos mecanismos contribuem para a estabilização temporária de redes sociotécnicas que incorporam o ChatGPT:

  • Inscrições e documentações: Textos, guias, tutoriais e outras formas de documentação que estabilizam certas formas de interação com o ChatGPT, tornando-as reproduzíveis e transferíveis. Por exemplo, guias de "prompting" que codificam práticas específicas de interação com o modelo.
  • Padronização de interfaces: Interfaces de usuário e APIs que estabilizam como o ChatGPT é acessado e utilizado, criando padrões de interação consistentes. Estas interfaces funcionam como "pontos de passagem obrigatórios" que configuram possibilidades de ação.
  • Institucionalização de práticas: A incorporação do ChatGPT em rotinas institucionais, currículos, políticas e procedimentos que normalizam certas formas de uso. Por exemplo, a adoção de políticas institucionais sobre o uso do ChatGPT em contextos educacionais.
  • Narrativas e discursos: Histórias, metáforas e discursos que enquadram o ChatGPT de formas específicas, estabilizando certas compreensões de suas capacidades, limitações e implicações. Por exemplo, narrativas sobre o ChatGPT como "assistente" ou "colaborador".

Estes mecanismos de estabilização não operam isoladamente, mas se reforçam mutuamente, criando o que Law (1992) descreve como "durabilidade relativa" - configurações que, embora nunca completamente fixas, mantêm certa coerência através do tempo e espaço.

4.2 Processos de Desestabilização e Reconfiguração

Simultaneamente, diversas forças e processos desestabilizam e reconfiguram estas redes:

  • Controvérsias e contestações: Debates sobre questões como autoria, plágio, viés algorítmico e responsabilidade que desestabilizam compreensões estabelecidas do ChatGPT e suas implicações. Estas controvérsias frequentemente mobilizam novos atores e recursos, reconfigurando redes existentes.
  • Inovações técnicas: Atualizações, modificações e inovações no próprio ChatGPT e tecnologias relacionadas que alteram suas capacidades e limitações, desestabilizando práticas e compreensões estabelecidas. Por exemplo, a introdução de novas versões do modelo com capacidades expandidas.
  • Apropriações criativas: Usos não-antecipados ou não-sancionados do ChatGPT que desafiam pressupostos sobre suas aplicações apropriadas. Estas apropriações frequentemente emergem de comunidades marginais ou não-dominantes, introduzindo novas possibilidades e desafios.
  • Falhas e breakdowns: Momentos em que o ChatGPT falha ou produz resultados inesperados, revelando a fragilidade de redes aparentemente estáveis e provocando reconfigurações. Estas falhas frequentemente tornam visíveis aspectos da rede que normalmente permanecem invisíveis.
"A estabilidade não é a regra, mas a exceção que precisa ser explicada. O mundo social está constantemente sendo feito e refeito através de processos de associação e dissociação." (Adaptado de Latour, 2005)

4.3 Política das Redes Sociotécnicas

Os processos de estabilização e desestabilização não são politicamente neutros, mas incorporam e performam relações de poder específicas. Como argumenta Winner (1986), artefatos tecnológicos têm política - eles incorporam e impõem certas configurações de poder e autoridade.

No caso do ChatGPT, podemos identificar diversas dimensões políticas nas redes sociotécnicas que o incorporam:

  • Política de acesso: Quem tem acesso ao ChatGPT, sob quais condições, e para quais propósitos. Estas questões envolvem considerações sobre infraestrutura, custos, habilidades técnicas e políticas institucionais.
  • Política de representação: Quais perspectivas, vozes e conhecimentos são representados nos dados de treinamento e operações do ChatGPT, e quais são marginalizados ou excluídos. Estas questões envolvem considerações sobre viés, diversidade e inclusão.
  • Política de validação: Quais formas de conhecimento produzidas com o ChatGPT são consideradas válidas ou legítimas, e quais são desqualificadas. Estas questões envolvem considerações sobre autoridade epistêmica, credibilidade e reconhecimento.
  • Política de responsabilidade: Como a responsabilidade por erros, danos ou consequências negativas é atribuída e distribuída em redes que incorporam o ChatGPT. Estas questões envolvem considerações sobre accountability, transparência e governança.

Reconhecer estas dimensões políticas é essencial para uma compreensão crítica do ChatGPT como ator-rede, evitando tanto o determinismo tecnológico quanto o construtivismo social simplista em favor de uma análise que reconhece como tecnologias e sociedades são co-produzidas através de processos contínuos de negociação e contestação.

5. Framework Analítico: Investigando Empiricamente o ChatGPT como Ator-Rede

Baseado nas análises teóricas e conceituais desenvolvidas nas seções anteriores, esta seção propõe um framework analítico para investigar empiricamente o ChatGPT como ator-rede em contextos acadêmicos e além. Este framework oferece orientações metodológicas e conceituais para pesquisadores interessados em aplicar a perspectiva ator-rede ao estudo de tecnologias de IA.

5.1 Princípios Metodológicos

O framework proposto é orientado por quatro princípios metodológicos fundamentais:

  • Simetria generalizada: Analisar humanos e não-humanos com o mesmo repertório conceitual, evitando pressupostos a priori sobre a natureza da agência ou causalidade. Isto implica tratar o ChatGPT não como um objeto passivo de análise, mas como um actante que participa na construção da realidade estudada.
  • Seguir os actantes: Rastrear as associações e traduções através das quais o ChatGPT e outros actantes se conectam, transformam e reconfiguram mutuamente. Isto implica uma abordagem empírica que segue os actantes em suas trajetórias através de diferentes contextos e práticas.
  • Atenção à materialidade: Reconhecer a materialidade do ChatGPT e outros actantes não-humanos, evitando reduzi-los a representações puramente simbólicas ou discursivas. Isto implica atenção às infraestruturas, interfaces, algoritmos e outras materialidades que participam na produção de agência.
  • Reflexividade metodológica: Reconhecer como métodos de pesquisa não apenas descrevem, mas participam ativamente na construção dos fenômenos estudados. Isto implica uma consciência crítica de como nossas próprias práticas de pesquisa configuram o que é observado e como é interpretado.

5.2 Dimensões Analíticas

O framework propõe cinco dimensões analíticas interconectadas para investigar o ChatGPT como ator-rede:

  • Constituição sociotécnica: Análise da rede heterogênea de elementos (algoritmos, dados, infraestruturas, interfaces, práticas, discursos) que constituem o que reconhecemos como "ChatGPT". Questões-chave incluem: Quais elementos são mobilizados na constituição do ChatGPT? Como estes elementos são associados e estabilizados? Quais atores participam nesta constituição e como?
  • Processos de tradução: Análise dos processos através dos quais o ChatGPT traduz e transforma interesses, significados e práticas em redes acadêmicas. Questões-chave incluem: Como o ChatGPT problematiza, interessa, alista e mobiliza outros atores? Como interesses e significados são transformados através destas traduções? Quais resistências e contestações emergem?
  • Mediação e transformação: Análise de como o ChatGPT medeia e transforma conhecimentos, práticas e relações. Questões-chave incluem: Como o ChatGPT transforma o que é conhecido e como é conhecido? Quais novas formas de conhecimento e prática emergem desta mediação? Como relações entre atores são reconfiguradas?
  • Estabilização e desestabilização: Análise dos processos através dos quais redes que incorporam o ChatGPT são estabilizadas e desestabilizadas. Questões-chave incluem: Quais mecanismos contribuem para a estabilização destas redes? Quais forças e processos as desestabilizam? Como controvérsias são negociadas e resolvidas?
  • Política e ética: Análise das dimensões políticas e éticas das redes sociotécnicas que incorporam o ChatGPT. Questões-chave incluem: Quais configurações de poder são performadas nestas redes? Quais vozes e perspectivas são amplificadas ou marginalizadas? Como responsabilidade e accountability são distribuídas? Quais valores e normas são incorporados e performados?
"O método não é a garantia de encontrar, mas a arte de problematizar. Não é sobre aplicar um conjunto de regras, mas sobre cultivar uma sensibilidade para as complexidades, ambiguidades e multiplicidades do mundo." (Adaptado de Law, 2004)

5.3 Estratégias de Investigação

O framework sugere diversas estratégias de investigação para operacionalizar estas dimensões analíticas:

  • Etnografia de práticas: Observação detalhada de como o ChatGPT é utilizado em práticas acadêmicas concretas, com atenção às interações, negociações e transformações que ocorrem. Esta abordagem pode revelar aspectos da agência do ChatGPT que não são evidentes em análises puramente textuais ou discursivas.
  • Análise de controvérsias: Investigação de debates, disputas e controvérsias relacionadas ao ChatGPT, como questões de autoria, plágio, viés ou responsabilidade. Estas controvérsias frequentemente tornam visíveis aspectos das redes sociotécnicas que normalmente permanecem invisíveis.
  • Cartografia de associações: Mapeamento das redes de associações entre diversos actantes (humanos e não-humanos) que participam na produção, circulação e transformação de conhecimentos com o ChatGPT. Esta abordagem pode revelar padrões e dinâmicas que não são evidentes em análises focadas em actantes isolados.
  • Análise de inscrições: Investigação dos textos, documentos, visualizações e outras inscrições produzidas com ou sobre o ChatGPT, com atenção a como estas inscrições estabilizam e circulam conhecimentos. Esta abordagem pode revelar como o ChatGPT participa na produção de "móveis imutáveis" (Latour, 1990) que permitem a circulação e acumulação de conhecimentos.
  • Experimentação reflexiva: Engajamento experimental com o ChatGPT como parte do processo de pesquisa, com atenção reflexiva a como este engajamento configura o que é observado e como é interpretado. Esta abordagem reconhece que o pesquisador não é um observador externo, mas parte da rede sociotécnica estudada.

Estas estratégias não são mutuamente exclusivas, mas complementares, oferecendo diferentes perspectivas e insights sobre o ChatGPT como ator-rede. Sua combinação pode produzir uma compreensão mais rica e nuançada das complexas dinâmicas através das quais o ChatGPT participa na produção de conhecimento acadêmico.

6. Implicações e Direções Futuras

A análise do ChatGPT como ator-rede desenvolvida neste artigo tem implicações significativas para diversas áreas, incluindo estudos de ciência e tecnologia, educação, ética da IA e política de conhecimento. Esta seção explora algumas destas implicações e sugere direções para pesquisas futuras.

6.1 Implicações para Estudos de Ciência e Tecnologia

Para os estudos de ciência e tecnologia, nossa análise sugere a necessidade de abordagens que:

  • Reconheçam a agência distribuída em sistemas sociotécnicos contemporâneos, evitando tanto o determinismo tecnológico quanto o construtivismo social simplista.
  • Desenvolvam métodos e conceitos para analisar a materialidade algorítmica e sua participação na produção de conhecimento.
  • Explorem as múltiplas ontologias performadas em diferentes práticas envolvendo tecnologias de IA, reconhecendo sua multiplicidade e fluidez.
  • Investiguem as dimensões políticas e éticas das redes sociotécnicas que incorporam IA, com atenção às configurações de poder, exclusão e marginalização.

6.2 Implicações para Educação e Prática Acadêmica

Para educação e prática acadêmica, nossa análise sugere a necessidade de:

  • Desenvolver pedagogias que reconheçam e engajem criticamente com o ChatGPT como actante na produção de conhecimento, em vez de simplesmente proibir ou ignorar sua presença.
  • Repensar conceitos de autoria, originalidade e contribuição intelectual para acomodar a agência distribuída em redes que incorporam IA.
  • Cultivar habilidades de "letramento sociotécnico" que permitam a estudantes e pesquisadores navegar e negociar criticamente com tecnologias como o ChatGPT.
  • Desenvolver práticas de avaliação e validação que reconheçam as novas formas de conhecimento e colaboração que emergem de interações com IA.
"A questão não é se devemos usar ou não tecnologias como o ChatGPT, mas como podemos desenvolver práticas de uso que reconheçam sua agência, limites e implicações, cultivando relações mais reflexivas, responsáveis e criativas com estas tecnologias." (Original)

6.3 Direções para Pesquisas Futuras

Nossa análise sugere diversas direções promissoras para pesquisas futuras:

  • Estudos empíricos detalhados: Investigações etnográficas de como o ChatGPT é incorporado em práticas acadêmicas específicas, com atenção às transformações, negociações e contestações que ocorrem.
  • Análises comparativas: Estudos que comparam como o ChatGPT é performado em diferentes contextos culturais, disciplinares e institucionais, revelando sua multiplicidade ontológica.
  • Investigações históricas: Análises da genealogia das redes sociotécnicas que incorporam o ChatGPT, situando-o em trajetórias mais amplas de desenvolvimento tecnológico e transformação social.
  • Experimentações metodológicas: Desenvolvimento de novos métodos e abordagens para investigar a agência distribuída em sistemas sociotécnicos contemporâneos, incluindo métodos que incorporam o próprio ChatGPT como parte do processo de pesquisa.
  • Intervenções críticas: Projetos que não apenas analisam, mas intervêm ativamente nas redes sociotécnicas que incorporam o ChatGPT, explorando possibilidades para configurações alternativas que promovam valores como justiça, inclusão e sustentabilidade.

Estas direções de pesquisa não são exaustivas, mas indicam alguns dos caminhos promissores para expandir e aprofundar nossa compreensão do ChatGPT como ator-rede na produção de conhecimento acadêmico e além.

7. Conclusão: Por uma Compreensão Simétrica e Crítica da IA na Produção de Conhecimento

Este artigo expandiu a análise do ChatGPT como ator-rede na produção de conhecimento acadêmico, aprofundando o diálogo teórico para incluir contribuições de Donna Haraway, Michel Callon e John Law, e examinando mais detalhadamente os processos de tradução, mediação e estabilização através dos quais esta tecnologia transforma práticas epistêmicas.

Nossa análise demonstrou como o ChatGPT opera não como uma ferramenta passiva ou um agente autônomo, mas como um actante que participa ativamente na construção, transformação e circulação do conhecimento através de redes heterogêneas de associações. Esta perspectiva desafia tanto visões instrumentais que reduzem o ChatGPT a uma ferramenta neutra quanto narrativas deterministas que o tratam como uma força autônoma que impõe transformações unilaterais.

Em vez disso, propomos uma compreensão simétrica e crítica que reconhece a agência distribuída em sistemas sociotécnicos contemporâneos, a materialidade dos algoritmos como actantes, e as dimensões políticas e éticas das redes que incorporam tecnologias de IA. Esta compreensão não apenas enriquece nossa análise teórica, mas tem implicações práticas significativas para como engajamos com estas tecnologias em contextos educacionais, acadêmicos e além.

O framework analítico proposto oferece recursos conceituais e metodológicos para investigar empiricamente o ChatGPT como ator-rede, contribuindo para o desenvolvimento de abordagens mais reflexivas, responsáveis e criativas à integração desta tecnologia em práticas de produção de conhecimento. Este framework não é prescritivo, mas heurístico, oferecendo orientações que podem ser adaptadas e desenvolvidas em resposta a contextos e questões específicas.

Em última análise, a análise do ChatGPT como ator-rede nos convida a repensar fundamentalmente não apenas nossas relações com tecnologias específicas, mas nossas compreensões da agência, conhecimento e subjetividade em um mundo onde humanos e não-humanos estão cada vez mais entrelaçados em redes complexas de associações. Este repensar não é apenas um exercício teórico, mas uma necessidade prática e política em um momento de transformações sociotécnicas profundas que reconfiguram como conhecemos, aprendemos e agimos no mundo.

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Sobre o Autor

Prof. Me. Ivan Prizon

Prof. Me. Ivan Prizon

Doutorando em Política de Inovação (UFPR)

Economista pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Doutorando em Política de Inovação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ex-pesquisador no Observatório da Indústria na Federação da Indústria do Estado do Paraná e ex-Economista na Secretaria da Fazenda, na Receita Estadual do Paraná. Atualmente é Pesquisador Chefe e Diretor de Novos Negócios na Rede Integrare de Pesquisa e Análise e Estrategista de Marca e Negócios na Agência Integrare. Desenvolve projetos paralelos de Inteligência Artificial, Metodologia Científica e Inovação, entre eles o Instituto de Criação e Inovação (ICI) que fomenta e desenvolve trabalhos na área de Inovação, IA e Design Thinking.

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